História resumida do Coffea arabica de sua origem ao estabelecimento no Brasil

Natural da África, o cafeeiro Coffea arabica é uma planta de sub-bosques de região tropical de altitude dos meridianos continentais, entre 1000 e 4000 metros, situados nos vales do sudoeste da Etiópia, o planalto Boma do Sudão e o Monte Marsabit do Quênia.
As condições boas para a espécie Coffea arabica são a altitude superior a mil metros e o índice pluviométrico anual de média de 1500mm. O índice pluviométrico do Sítio Córrego da Anta, a terra da Café Gato-Mourisco, está entre 2000 e 2200 mm por ano, e a sua altitude média é 1230 metros.
O Coffea arabica é uma espécie da família Rubiaceae. São economicamente relevantes dentre cerca de 300 espécies da família Rubiaceae _e dentro das 103 espécies do gênero Coffea: C. kapakata; C. arabica; C. canephora; C. congensis; C. eugenioides S. Moore; C. racemosa Lour.

Dentre as variedades 2/3 de toda a produção agrícola mundial é de Coffea arabica, enquanto cerca de 1/3 é de Coffea canephora, sendo que as demais variedades correspondem a cerca de 2% da produção de café em escala mundial.
A espécie Coffea arábica é descrita como arbustos perenifólios de ramos eretos, folhas elípticas, coriáceas, frequentemente escuras, que em sua maior parte se encontram entre 2 e 3 metros de altura, mas podendo atingir 10 metros de altura em ambientes sombreados. Suas características biodinâmicas estão fortemente associadas a seu ecótopo natural de zonas tropicais de alta altitude. No Sudeste do Brasil, o seu crescimento vegetativo desperta a partir da primeira onda de calor no fim do inverno, e sua florada se distribui entre o período após o primeiro sinal de chuva do fim do inverno e o acúmulo de chuvas da primavera, e frequentemente ocorrem duas ou três floradas até chegar o fim da primavera.
As flores do cafeeiro são brancas e com aroma que lembra jasmim. Elas surgem em pontos axiais dos ramos plagiostrópicos, que irão devir em rosetas de frutos que após 5 meses se encontrarão desenvolvidos e em estágio de iniciar a maturação, processo que pode ser concluído em 8 meses após a floração.
O cafeeiro da espécie arabica aprecia solos profundos e bem drenados, altitudes entre 1200 a 1700 metros e temperaturas médias de 21 graus Celsius. Entretanto, é uma planta rústica e economicamente viável em condições de estresse ecológico, desde que ela tenha água à disposição e não esteja em zona de geadas.
Enquanto produto agrícola, o café é um fruto muito suscetível ao clima e por isto a sua característica sensorial variam significativamente, abrindo o potencial para a seleção de produtos por seus atributos sensoriais especiais segundo o terroir.

O produto do cafeeiro é o café, um grão que após passar pelo processo de torra (reação de Maillard), adquire qualidades sensoriais e químicas de interesse social, ritual e alimentar, a depender da cultura e da história de seu consumo. O século XVI viu este fruto expandir sua importância social através do comércio, de Constantinopla a Veneza1. A expansão do consumo do café se deu em termos de disputa cultural e política. Após ser aceito por uma grande clientela espalhada pelo império otomano, e ter uma demanda consolidada nas cidades do mundo árabe, o café passou a ser penalizado pela desconfiança de alguns exegetas do Alcorão e, para exemplificar o ambiente de problematização da bebida na cultura social árabe, em Meca no ano de 1511 houve perseguição aos seus consumidores, seguida de proibição de seu comércio. O resultado deste embargo cultural ao café foi fraco e não chegou a impedir que a cultura do café se desenvolvesse e que o seu cultivo fosse no século XV propagado pela península arábica e o seu consumo ser no século XVI difundido pelo império otomano2.
No processo da Idade Moderna, pouco tardou para o café se tornar objeto do interesse dos europeus. Há descrição de 1592 pelo viajante alemão Leonardo Raulwolf do ato alimentar de se tomar café e, já no fim do século XVI, o café era encontrado em Veneza e, avançando para o século XVII, as evidências da cultura do café na Europa são abundantes e verificadas em relatos de viajantes e descrições botânicas do café .
Durante o século XVII o café foi objeto de debate sobre as suas propriedades3, chegando ao fim deste século como veículo fomentador de debates especulativos, isto é, como a bebida oferecida em tavernas de se beber café, os coffeehouses, ou também pelo jocoso nome de penny universities, fazendo referência a característica diletante dos círculos de bebedores de café. Tal fato foi verificado na Europa continental, com os primeiros “cafés”, surgindo pela Itália, países baixos, nas regiões meridionais do império romano-germânico.
O café se tornou um produto prestigiado na Europa Moderna carregando uma etimologia exótica. A filologia da palavra café vem do sudoeste da Etiópia, palavra de origem abeximi, _do toponímio _kaffa. Deste nome, a derivação entre os turcos para koveh, e entre os árabes para qahwah. Em 1610 há um registro da versão em português, café, grafada por Pedro Teixeira4

Sendo uma bebida apreciada e estando o seu comércio estabelecido por mais de uma geração na Europa, o café transborda para as viagens marítimas e chegará às Américas. Segundo o historiador pioneiro da história do café no Brasil, Afonso Taunay, em 1616 os holandeses levaram por contrabando de Moka para o jardim botânico de Amsterdã pelo menos uma planta de café. De toda a forma, se narra que em 1710 uma ou mais plantas de Coffea arabica proveniente do Jardim Botânico de Amsterdã foram levadas para a ilha de Java, na atual Indonésia. A primeira descrição botânica do Coffea é deste exemplar ou de seu descendente, feita em 1713.
No começo do século XVIII o café passa a ser aclimatado pelos holandeses no atual Suriname, sendo esta a provável primeira experiência de cafeicultura nas Américas. Depois da experiência holandesa foi a vez dos franceses de adaptarem o cafeeiro para a América. Em 1726 os franceses já os têm plantados na ilha de Martinica. Não demorou para o contrabando espalhar os cafeeiros por ilhas e pelo continente e em 1750 e 1790 os cafeeiros que já estavam plantados por toda América Central e México 5 e em 1730 a Bolsa de Nova York negociava café6, para o que viria a tornar até o fim do século XIX um importante negócio norte-americano de reexportação, compreendendo em 1804, segundo Michelle Craig McDonald, citada por Marquese, 10% dos ganhos com bens exportáveis dos Estados Unidos7.
Por outra via de disseminação dos cafeeiros pela América, a holandesa, o cafeeiro chegou primeiro ao Suriname. Em 1714, algumas mudas deste cafeeiro foram reproduzidas, dando origem ao subgrupo Coffea arabyca typica Cramer. De volta ao lado francês da corrida para montar os plantations de cafeeiros, em 1720, Mourgues, um francês, levou sementes de cafeeiros para a Guiana Francesa, reproduzindo a planta em torno da cidade de Caiena8. A história do café a partir deste momento foi ramificada, ganhando contextos regionais e nacionais diversos, o que deu a história da cafeicultura a característica de diversidade genealógica.

No Brasil, a linhagem typica desembarcou primeiro que a francesa. O Coffea arabica foi introduzido em 1727 por contrabando de Francisco de Melo Palheta, sargento-mor que levou com ele a Belém do Grão-Pará algumas sementes de Caiena, do que se sabe por relato de Frei João de São José de Queiroz que teriam sido elas um souvenir dado pela esposa do governador ao sargento português. Que seria a anedota verdadeira ou não, não se sabe, mas o que se conhece por registro é que Palheta, que seguiu instruções de seu capitão-general, teria trazido cerca de mil sementes de cafeeiro e mais cinco mudas9. A espécie teve uma passagem de aclimatação pela província do Maranhão, teve o seu cultivo liberado de privilégio real por licença concedida pelo rei D. João V, que se adicionou em 1739 a proibição aduaneira da importação de café vindo de territórios exógenos ao império. Tais leis auxiliaram a rápida disseminação do experimento de aclimatação do cafeeiro no Brasil. Em meados da década de 1750, uma linhagem de café vinda do Jardim Botânico de Paris é plantada na região serrana do Baturité, Ceará. A produção agrícola destas lavouras foram consideráveis, para a época10.

O cafeeiro não prospera nas capitanias do que corresponde hoje à região Nordeste, mas se aclimatou na capitania de Ilhéus e em meados da década de 1780, supostamente decorrente da sua disseminação por freis capuchinhos.
Cabe fazer um parênteses aqui para citar que houve um segundo percurso de desembarque do Coffea arabica na América, que recebeu o nome de Coffea arabica bourbon Choussy. Nesta linhagem, os grãos de Moka, Iêmen, foram entre 1717 e 1718 reproduzidos na Ilha Bourbon, (hoje, ilha Reunião). A linhagem do arábica bourbon chegou ao Brasil em 1860 por execução de um agente do governo imperial. Futuramente, as linhagens typica e bourbon dariam origem a quase todas as variedades de Coffea desenvolvidas no Brasil no decorrer do século XX.
Por fim, o café chegaria nas capitanias do Sul, onde ele iria entrelaçar a sua história com a do capital, transformando a cultura e a paisagem do Brasil. Em meados de 1760 o desembargador João Alberto de Castelo Branco trouxe algumas dezenas de mudas de café ao Rio de Janeiro, provavelmente vindas do Maranhão. Ele as entregou aos clérigos capuchinhos, que as cultivaram no morro de Santo Antônio. Em 1782 o cônego Januário Barbosa registrou tê-las visto viçosas. O café neste primeiro período de adaptação climática ao Brasil mostra um quadro agronômico de experiências, estando as primeiras lavouras de café ao lado de lavouras de algodão e cana-de-açúcar11.
O progresso da cafeicultura brasileira neste primeiro período de sua história, antes de se tornar um commoditie nacional, foi uma conjuntura balizada internacionalmente pelos bloqueios comerciais das guerras europeias (França versus Europa e Inglaterra), aproximação comercial do Brasil com os Estados Unidos, e a diáspora africana ao Brasil por efeito da escravidão brasileira; e nacionalmente com a adaptação agrícola do cafeeiro ao ecótopo do sudeste brasileiro e a estrutura social e econômica do vale do Paraíba e Oeste de São Paulo que correspondeu às potencialidades do cafeeiro para o seu alto valor econômico enquanto objeto de empreendimento agrícola. A história econômica do café no Brasil começa pela crise dos plantations do Caribe após a revolução da ilha de São Domingos, movida pela massa de escravos que tomaram o governo da ilha em 1790, tendo como uma das consequência indiretas o colapso da exportação de café da ilha, um negócio da ordem laboral de 156 mil escravos e correspondente a 50% todo o café produzido no mundo12. A crise econômica da cafeicultura decorrente da revolução de São Domingos em 1804 teve por consequência a propulsão do mercado cafeeiro em quatro territórios americanos com grande potencial para a produção de café: Jamaica, Cuba, a parte espanhola da ilha de São Domingos, e o Brasil. Entretanto, Jamaica, Cuba e São Domingos eram afetados por guerras cambiais entre os Estados Unidos e a Europa, e o Brasil, além de não estar condicionado guerras cambiais entre potências europeias e os Estados Unidos, tinha território, a modo de dizer, “sem limites geográficos” para a expansão da cafeicultura, características que as colônias do Caribe não contavam pois tinham limitações geográficas para terras agrícolas e seus recursos econômicos e população eram concentrados na cultura da cana-de-açúcar. Neste cenário de estrangulamento dos recursos para a expansão do café, apenas Cuba se beneficiou, sobressaltando a recessão econômica da vizinha São Domingos e expandindo ao triplo a sua produção cafeeira ao longo das primeiras três décadas do século XIX13. O cenário de expansão da cafeicultura ocorreu quando o Brasil já havia concluídos experimentos agronômicos de aclimatação do café, e o cenário caribenho de contingenciamento da produção de café por força da competição territorial com a cultura da cana-de-açúcar fez do café no Brasil uma oportunidade para o capital mercantil. Valendo-se das vantagens estruturais do Brasil como rede comercial, abundância de mão-de-obra servil e recursos naturais, a capitania do Rio de Janeiro promoveu vigorosamente a cultura cafeeira14 e, indiretamente, consolidou neste período os vínculos comerciais e diplomáticos com os Estados Unidos.

Nesta pequena conjuntura de começo de século, em 1802 há registro de Tuckey, um inglês, de 6.250 medidas de arroba (aproximadamente 60 kg) de café saindo do porto da Guanabara e em 1822 o registro da Associação Comercial do Rio de Janeiro descrevia 760.240 medidas de arroba de café saindo do Rio de Janeiro15, que viriam principalmente de algumas municipalidades onde a cultura foi difundida sobre as serras de mata-virgem do vale do Paraíba e imediações paulistas e mineiras, resultando em veloz desenvolvimento que atingiria em 1849 a exportação de 8 milhões de sacas de café, produzidas principalmente em em Valência, Piraí, Resende, Vassouras, Paraíba do Sul, Cantagalo, Sapucaia, entre outras vilas e cidades fluminenses16.
Em pesquisa de história econômica citada por Rafael de Bivar Marquese em “Capitalismo, Escravidão e a economia cafeeira do Brasil no longo do século XIX” conclui-se que a produção cafeeira de 1821 a 1833 quadruplicou, passando de 13 mil a 67 mil toneladas de café exportadas17. Tal processo de acelerada evolução econômica em torno da aclimatação do cafeeiro no Brasil em pouco tempo se constituiu num centro econômico setorial da economia do império de larga importância, representada pelas centenas de milhares de escravos deslocados de outras províncias do Brasil e vindos pelo tráfico de escravos do Atlântico com destino às fazendas cafeeiras, e o montante importante de capitais empregados no edifício logístico de financiamento das lavouras de café18. Outros fatores conjunturais que favoreceram a expansão da cultura econômica do café foi a produção de viveres nas margens da Estrada Real (derivados da cana-de-açúcar, porcos, feijões, mandioca, milho, algodão, em suma), e o comércio de muares de Sorocaba, que abastecia as explorações de ouro nos planaltos do Brasil meridional das províncias de São Paulo, Goiás e Minas Gerais, e que com a rápida evolução do comércio do café no Vale do Paraíba veio a ser redirecionado para cumprir o enorme, para as dimensões desta sociedade, tráfico comercial do café, descendo em direção às praças portuárias, onde o café era pesado, ensacado e embarcado19. Cabe ainda citar outros fatores conjunturais da expansão do café para além do vale do Paraíba: A diversificação da zona produtora de açúcar do planalto paulista (Porto Feliz, Sorocaba, Campinas, Piracicaba, Jundiaí, e Bragança20 ) em produtora de cafés a partir de 1840, e a derrubada de Lei de impedimento de povoar “terras proibidas”, marginais a Estrada Real. A proibição de ocupar, abrir rotas e povoar localidades ao lado da Estrada Real tinha o objetivo de evitar o extravio do ouro das Minas Gerais. Com o fim da lei, as áreas liberadas da contingência levaria o café a ser avançado em direção a Zona da Mata mineira, agregando a infraestrutura comercial da Estrada Real grandes áreas de terras férteis produtoras de alimentos e commodities21.

Visto na luz de dois séculos e meio de expansão da cafeicultura pelo Brasil, pode parecer uma ascensão suave o processo de abertura dos pomares cafeeiros pelas encostas do vale do Paraíba. Contudo, se levado em conta pormenores da história do quotidiano, se percebe um processo banhado de violência da instituição da escravidão, irradiada pelos lugares domésticos e os públicos, e que imprime sua mentalidade em todo esforço individual e de organização comunitária na história social do Brasil22.
A respeito da escravidão, um parênteses antes de voltar a tratar do café: o Brasil era um reino desde 1815 em meio a um ambiente diplomático hostil, de grande pressão comercial e militar inglesa pelo rebaixamento da instituição da escravidão no Brasil. A história diplomática do Brasil com a Inglaterra no século XIX é uma trajetória de acirrada disputa política sobre as Leis e fiscalização do tráfico de escravos no Brasil, e a história da diáspora forçada de milhões de africanos, trazidos ao Brasil pelo Atlântico, onde seriam transferidos para os cativeiros das fazendas das províncias brasileiras. Tal processo, é importante dizer, era ilegal desde 1830, fato que até a promulgação da Lei Eusébio de Queirós em 1850, não havia em nada inibido o lucrativo comércio ilegal de africanos escravizados no litoral brasileiro, que continuava acontecendo ao conhecimento de todos, em portos irregulares organizados em fazendas do litoral brasileiro.
Em 1822 o Brasil passou a ser a terra de um povo independente dos vínculos coloniais e em 1824, passou a ter proclamada uma Carta Constituinte que importava da Europa o direito inalienável a igualdade entre os homens, fato em nada trivial para a história social de uma ex-colônia assentada sobre uma sociedade que neste momento tinha a extensão temporal de doze gerações e que teve como fato maior da história de seu Direito, a defesa da escravidão. Tal evento diplomático e legislativo logo encontrou eco num cenário externo em que a legitimação da Constituinte do Brasil é tributada pelo compromisso da Inglaterra e do Brasil firmado em Tratado de 1826, em que a Inglaterra formalizava o reconhecimento da independência do Brasil mediante o Brasil proibir e coibir o comércio Atlântico de escravos23.

A barganha política da liquidação do comércio escravagista e deslegitimação deste comércio pelo suporte inglês à diplomacia brasileira, em que pese a Lei de 1831, firmada durante a Regência, em que todos os escravos vindos de fora do Brasil estavam declarados livres, e a Lei do parlamento inglês, de 1846 em que se autorizou o apresamento de qualquer embarcação com suspeita de posse de africanos escravizados, em nada impediu que centenas de milhares de africanos escravizados fossem desembarcados todos os anos nos portos das províncias da Bahia, Espírito Santo, Rio de Janeiro e São Paulo, com destino às fazendas de cana de açúcar e café, mas especialmente para as fazendas do vale do Paraíba24.
A mistura de aliança e disputa política entre Inglaterra e Brasil sobre o comércio Atlântico além de demonstrar uma polarização evidente entre uma ordem escravocrata, e uma ordem firmada sob a ideologia dos “direitos do homem”, do trabalho livre e remunerado, reverbera na tendência política nacional, que via seu parlamento colidir ideias de liberdade, edificadas em torno da reação conservadora e nacionalista contra a interferência da Inglaterra no Brasil, com as liberais de defesa da igualdade dos homens, edificadas em torno do ideal abolicionista de parte do parlamento brasileiro25. Sob este sombreiro de interesses liberais e conservadores entrelaçados na mentalidade brasileira, as partes da sociedade representada pelo vale do Paraíba e Oeste paulista foram os cenários iluminados das colisões das forças ideológicas polarizadas, encarnadas nos indivíduos que arrastados para a história da expansão da cafeicultura no sudeste brasileiro, se viram entre a sustentação da escravidão e a modernização liberal.
Embora fossem poucas, e numericamente minúscula em indivíduos, as experiências que dataram do período Regencial, com colônias de trabalhadores livres, emigrados da Suiça, Alemanha e Açores, passou a ser tema para pensamento liberal desenvolver o tópico sobre a nação, levando o “colono europeu” a ser reelaborado na tribuna do Parlamento brasileiro da segunda metade do XIX como grande debate nacional sobre o progresso e reformas sociais no Brasil. O lugar hipotético do imigrante europeu na sociedade brasileira jogava luz sobre os problemas fundiários da distribuição de bens e riquezas do país. Para a voz pública reformista no Brasil, como bem representaram Joaquim Nabuco, André Rebouças e Alfredo d’E. Taunay, o imigrante no Brasil além de ser uma causa objetiva, era oportunidade retórica de se discursar pelo abolicionismo e por novo regimento sobre a posse fundiária que fomentasse o assentamento de colonos. A parte da luta abolicionista, a campanha pela imigração do europeu para povoar o Brasil trazia como pano de fundo a busca por reconstruir a economia nacional sobre os fundamentos do trabalho livre assalariado, e trazia evidência para o crescente problema fundiário nacional, em que a posse, domínio e patrimônio de terras no Brasil estava contingenciado à pequena classe de famílias antigas brasileiras.
Para se dimensionar o que foi a escravidão na cafeicultura, em 1885 o agrônomo holandês Van Delden Laener estimou que 284 mil escravos trabalhavam nos pomares cafeeiros brasileiros26, número que se comparado a dimensão populacional do Brasil, representaria aproximadamente 2% da população brasileira. Tal experiência do trabalho livre na cafeicultura, ainda que sumamente fracassada no Rio de Janeiro e Minas Gerais, circunstanciada a regiões de São Paulo e percentualmente insignificante do ponto de vista demográfico, se revelou, segundo Rafael Bivar Marquese, importante como experiência social prévia a total erosão do sistema escravagista brasileiro27. Chegado o fim do “tráfico negreiro” na década de 1850, e a Lei do Ventre Livre em 1872, o parlamento brasileiro ressonava os movimentos internos de sua economia e reverberava as tensões políticas emergidas da colisão da escravidão com o trabalho livre assalariado.

O café década após década subiu o seu posto entre as riquezas fluminenses, e se tornou uma importante receita para a província do Rio de Janeiro, chegando a 9 milhões de arrobas de café em 185528 e pode também ser percebido pelas atividades intelectuais colaterais que a cafeicultura desenvolvia em meados do século XIX, como a multiplicação de manuais agronômicos, engenharia de máquinas agrícolas e as ferrovias.
A partir da década de 1880 a realidade que se observa nas fazendas de café mudou de figura com as ferrovias e novas máquinas de descascar o café. O café até a década de 1870 via drenar a mão de obra da lavoura para os dispêndios de recursos com o processamento do café e o seu transporte até os portos. Com novas máquinas levadas de trem e carro-de-boi até as fazendas, parte dos trabalhos complicados da cadeia produtiva do café como descascar o café foram simplificados, significando importante redução de custos e liberação de trabalhadores para as demais funções das operações agrícolas da fazenda cafeeira do século XIX29.
A cultura do café avançou até onde o seu escoamento da fazenda à zona portuária era viável em termos de custos de comercialização. O fator em conta sobre o avanço da cultura do café ou o seu contingenciamento era a qualidade das estradas, obstáculos naturais como os rios, e distâncias percorridas que aumentavam o custo de frete do café ao ponto de não ser mais um negócio viável. A região de Mariana-Ouro Preto, neste aspecto, frustrou qualquer iniciativa de cafeicultura devido aos custos da viagem do café até os portos do Rio de Janeiro30. Regiões futuramente reinantes na cultura do café, o Sul de Minas Gerais e o Oeste Paulista apenas tiveram o desenvolvimento exponencial da cultura sobre os seus planaltos e serras quando as vias terrestres passaram por melhorias e a estrada-de-ferro multiplicaram a tonelagem de carga possível de ser levada do interior da Província para o Porto de Santos, superando o gargalo da custosa e cruel travessia da Serra do Cubatão por tropas de burros31.
Na década de 1850 coincidiu o amadurecimento tecnológico dos projetos ferroviários, a procura dos britânicos por oportunidades para vender as suas máquinas, e a necessidade do setor cafeeiro da economia brasileira de melhorar o escoamento da sua produção dos planaltos do interior para os portos do litoral32. Aqui começavam a ser desenhados os projetos de estradas ferroviárias ligando os portos ao interior da província do Rio de Janeiro, como o caso das Estradas de Ferro D. Pedro II, conectando Juiz de Fora ao porto do Rio de Janeiro. Duas décadas mais tarde, vários ramais ferroviários vão sendo inaugurados no interior do Rio de Janeiro, e na província de São Paulo dezenas de linhas de trem são construídas por iniciativas públicas e privadas, formada por sociedades de produtores, como a Companhia Paulista de Estrada de Ferro, que levantou 5 mil contos de fundo para fazer os ramais que conectavam Descalvado a Campinas, passando por Rio Claro33. Em 1889 já se somava em Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais um total de 3482 km de malha viária construída34. Para a região da divisa entre a Mogiana e o Sul de Minas Gerais, onde fica o Sítio Córrego da Anta, de grande importância na multiplicação ferroviária foi a Mogiana, que conectou Campinas a Mogi Mirim, destampando o potencial agrícola cafeeiro e de formação de cidades de uma grande região ao Noroeste de São Paulo, da divisa com a região serrana do Sul da província de Minas Gerais. Em 1886 A Companhia Mogiana conectou Minas Gerais a Campinas por malha viária com o ramal de Caldas, que subiria a serra levando consigo população livre de brasileiros e europeus imigrantes para esta região mineira pouco povoada e de altitude, clima serrano e topografia coberta por florestas e campos, e que era até então custosamente acessível devido a barreira de serras, e desinteressante para o capital devido ao custo comercial para se deslocar produtos agrícolas até o porto de Santos.

Antes de alcançarem as serras do Sul de Minas Gerais, os ramais ferroviários abertos desenhavam a rota agrícola da cafeicultura em direção a áreas pouco povoadas do planalto Noroeste da província de São Paulo, a mais afetada pela falta de mão-de-obra para a lavoura35, fato este associado ao lobby promovido pela elite paulista pela imigração de colonos europeus para o trabalho nas fazendas de café. Para visualizar a crise permanente do trabalho na cafeicultura brasileira do século XIX, considera-se um mapa econômico em que o Vale do Paraíba tem acesso direto ao comércio ilegal de escravos do tráfico Atlântico, e também de escravos brasileiros de comércio interprovincial, vindos da Bahia. Minas Gerais, contava com situação estável pois os escravos estabelecidos nas minas de ouro foram sendo vendidos para as fazendas de café da zona da Mata mineira. São Paulo não contou com estes contingentes de mão-de-obra e arrastou por quase todo o século XIX o problema da falta de trabalhadores para a expansão de sua cafeicultura. Embora carente de braços para laborar nas lavouras, a cafeicultura criava a escassez de trabalhadores em outros setores da economia doméstica, por em todo lado a sua atividade purgar de outras atividades os trabalhadores indispensáveis. Para além da atração que a cafeicultura causava sobre toda força laboral, estava o avanço da cafeicultura sobre terras destinadas a outras atividades produtivas. Embora seja um assunto que não cabe desenvolver aqui, as terras de pequenos agricultores ficaram vulneráveis a cobiça dos fazendeiros, que munidos da Lei de Terras de 1850 se viram com o direito de declarar proprietários legais de áreas de posse da população sem defesa legal, o que, de um jeito ou de outro, criava um litígio que concluía-se por regra na expulsão destes sertanejos e camponeses para vilas urbanas ou povoados, ou que concluía com a incorporação deles ao colonato da fazenda36.

Outro aspecto da crise dos trabalho nas regiões cafeeiras era que a lucratividade da venda do commoditie café atraía os trabalhadores que vendiam o seu dia de serviço, ou escravos que eram alugados para serviços braçais, para a atividade cafeeira, desequilibrando a oferta de trabalho para outras atividades essenciais da economia local e da coisa pública, como a manutenção de estradas37. Em São Paulo facção da elite viu no reformismo abolicionista a chance de povoar a província com mão-de-obra camponesa europeia. Neste ambiente político de disputa por braços de trabalho, logrou resultados a iniciativa do senador Nicolau de Campos Vergueiro, a Casa Vergueiro38. O modelo de atração de camponeses europeus ao Brasil montado por ele e seguidos por outros baseava-se em abrir uma firma de transbordo dos camponeses ao Brasil, financiado pelo tesouro da província, sem juros. Uma vez nas lavouras, os alemães, a maioria neste primeiro momento, seguiam o contrato de serviço, que comumente era de fazer todos os serviços numa gleba de terra, podendo mediante dividir a produção com a propriedade, cultivar alimentos nas bordas e entrelinhas dos pomares cafeeiros. Pagavam ao fazendeiro juros sobre o valor da soma dos gastos que a eles foi endereçado e subsidiado da viagem transatlântica da Europa ao Brasil, e do porto do Brasil até a fazenda, sendo em média um juros de 6% sobre este valor, podendo ser até 12%. Com um contrato próprio de trabalho, os europeus, no primeiro momento retidos nas fazendas pela dívida da viagem, conviviam com o trabalho escravo de forma heterogênea e por regra nunca “lado-a-lado”39. Este sistema, lucrativo para os agentes facilitadores da imigração, foi marcado por conflitos de interesse entre fazendeiros e colonos, em ambiente parcamente regrado a respeito dos contratos de serviço, e muitos litígios civis que acumulavam em torno da vida doméstica dos colonos nas fazendas. Apesar do conflito sobre pagamentos e obrigações de trabalho e o grande desinteresse da maioria dos fazendeiros pela inclusão do colono no corpo dos trabalhadores da fazenda, o sistema de financiamento do camponês europeu mostrou persistência e foi continuado por meio de Leis que garantiam créditos para os fazendeiros que financiassem a vinda de imigrantes, sendo responsável pela vinda de alguns milhares de europeus à província de São Paulo até o fim da década de 185040. Em vista das muitas vulnerabilidades que os colonos europeus, em grande parte germânicos, passaram no Brasil, não demorou para que as agências facilitadoras da emigração, localizadas na Europa, principalmente na Prússia e no Tirol, fossem combatidas no foro dos poderes locais que acusavam as agências de emigração para o Brasil de iludirem de má-fé os cidadãos que desejavam melhorar de vida com a emigração. Juntou à propaganda anti-imigração o desinteresse da maior parte da elite nacional e na década de 1860, fora os portugueses pouquíssimo europeus vieram emigrar ao Brasil41. Entretanto, um novo evento social migratório brasileiro começaria nesta mesma década: a migração interna de trabalhadores livres, neste caso, os habitantes do semiárido do Norte. Por causa de recentes duras estiagens no semiárido brasileiro do Nordeste, e em vista do crescimento da economia do café no Sul, milhares de trabalhadores livres das províncias do Nordeste brasileiro se deslocaram em direção às zonas cafeeiras do Sudeste, sendo esta migração na casa de milhares de pessoas chegando no Rio de Janeiro42 no decorrer das décadas de 1870 e 1880, ressaltando a este respeito o grande salto na quantidade dos “retirantes” após a seca de 187843. Segundo Paulo Cesar Gonçalves, os retirantes eram na sua maioria de famílias cearenses, e, embora eles não fossem experientes com cafeicultura, muitos tinham conhecimento da cultura do algodão e logo se mostravam adaptados à fazenda cafeeira. Os deslocados do Norte em direção às províncias de Rio de Janeiro e São Paulo, que vinham de barco a vapor pelo litoral, uma vez na fazenda de café eram alocados em funções estratégicas, como derrubada de bosques de Mata Atlântica e de formação de áreas novas de cafeicultura44.
Com o passar de duas décadas desde as experiências insatisfatórias das décadas de 1840 e 1850 de mão-de-obra livre e europeia na cafeicultura, foi se estabelecendo de forma comum, já na altura da década de 1880 quando muitos brasileiros livres passaram a migrar para as regiões cafeeiras em busca de terra e trabalho, um contrato de serviço de 4 anos em que o colono recebia uma lavoura já formada, para a qual ele era pago pelo fazendeiro um valor por pé de café nesta área, sobre os quais ele tinha a responsabilidade de cuidar e de colher, e direito de cultivar alimentos de subsistência e para comércio local, nos corredores do pomar cafeeiro45. Cabia ao fazendeiro o trabalho de formar o pomar e de todo o pós-colheita e comércio. Outras formas de remuneração do trabalho libre foram ficando corriqueiras, e os valores pagos encontrando estabilidade de mercado. No final da década de 1880, com o aumento vertiginoso dos imigrantes chegando ao Brasil, o mercado de trabalho na lavoura cafeeira tinha atingido regras e condutas previsíveis e já se considerava o trabalhador livre menos custoso do que a posse do trabalhador escravizado46.
Neste movimento político gradual em torno do desmonte da instituição da escravidão e a vinda abundante de população livre ao Brasil, por efeito de pressões da Inglaterra, a parcela paulista do parlamento brasileiro que promovia a imigração de europeus para o Brasil se viu respaldada pela estrada-de-ferro que em 1872 ligavam Santos a Campinas. Durante as décadas de 1870 e 1880 dezenas de ramais de estradas de ferro foram edificados, criando uma malha viária nas províncias de São Paulo e Rio de Janeiro que reestruturaram toda a economia do trabalho. Antes das Estradas de Ferro, 20% de toda força de trabalho de uma fazenda cafeeira estava ocupada com o trato da tropa de animais ou com a sua condução com a carga de café, das fazendas até o porto. As estradas de ferro liberaram as fazendas da necessidade das enormes tropas de muares, reorganizando logística de transporte das fazendas fundamentadas no carro-de-boi e no trem47. Outro fator importante das estradas de ferro foi a subida serra-a-cima de máquinas de processamento do café na fazenda. Máquinas de descascar, abanar e selecionar café promoviam a liberação de braços para outras funções da fazenda, como a colheita do café48. A estrada-de-ferro levava para as regiões relativamente distantes dos portos do Rio de Janeiro e São Paulo as tecnologias de caldeiras de vapor e promovia a cada máquina desembarcada o novo paradigma de equipamentos construídos por parafusos, substituindo toda uma cultura milenar do design do entalhe.
O trem e seus vagões reconstruíram a relação do brasileiro com a agricultura ao alterar definitivamente as relações de trabalho camponês no Brasil e tornar a circulação de mercadorias muito mais dinâmica, corroborando para o desmonte de todo um setor das fazendas e comunidades destinado a autossuficiência alimentar e artesã, substituídas pelas mercadorias e alimentos que o trem fazia chegar. Neste sentido, as fazendas cafeicultoras reduziam o seu pessoal e terras destinados a produção de alimentos diversos, e se redesenhavam em torno da monocultura49 e suas diretrizes de redução de custos e aumento da produtividade.
Seja pelas estradas de ferro substituírem as tropas de muares, seja por elas levarem máquinas até as fazendas, ou seja por elas serem o transporte da multidão de imigrantes que começam a desembarcar no Brasil concomitante com a multiplicação dos ramais viários, tudo conspirou para a valorização da mão-de-obra-livre e o colapso da instituição da escravidão. Junto a ampliação da malha ferroviária paulista, vieram em grande número os colonos italianos ao Brasil.
Os italianos começaram a chegar junto com a recuperação do preço e aumento da demanda por café no mercado mundial, e seu destino no Brasil foi em primeiro lugar o Oeste paulista, onde as estradas de ferro inauguradas criavam oportunidades de abertura de fazendas de café, que por sua vez precisavam contornar a escassez de trabalhadores na região. A imigração de europeus para o Oeste Paulista nesta conjuntura ganhou um novo fôlego, e se recompôs em forte lobby pela abertura da Sociedade Promotora de Imigração. Esta entidade se encontra já na altura da década de 1890 recebendo milhares de contos de réis de financiamento público e para ela era delegada quase toda a cadeia vertical que tem como o seu centro o imigrante desembarcando no Brasil. A Sociedade Promotora de Imigração fazia a propaganda no exterior recrutando imigrantes camponeses, recolhia fundos para subsidiar os bilhetes das viagens atlânticas dos imigrantes ao Brasil. Administrava as hospedarias onde os imigrantes faziam a quarentena e os processos de imigração, e alocava os imigrantes nas fazendas, onde passariam a residir50. Durante a década de 1880 foram milhares de contos de réis garantidos por Lei para o subsídio à construção de hospedarias aos imigrantes e subsídio de suas passagens de vinda ao Brasil. A vinda de imigrantes seria exponencial após a abolição da escravidão. Começaram a desembarcar com consistência já na década de 1870. Segundo Emilia Viotti da Costa, “entre 1875 e 1886, entrarão na Província de São Paulo quatro vezes mais imigrantes que nos quarenta anos anteriores51, o que somava cerca de 42 mil imigrantes. Contudo, a imigração de massa populacional ao Brasil iria se iniciar em 1888: a mão-de-obra livre no Brasil viria a receber o “efeito de propulsão” do grande fenômeno de imigração europeia a América. Em 1888 São Paulo recebeu 92 mil imigrantes e até 1900 os imigrantes desembarcados em São Paulo alcançariam aproximadamente 1 milhão de indivíduos52.

A produção cafeeira fluminense progrediu com o avanço sobre novas terras de Mata Atlântica, mas após o recorde fluminense de produção em 1855, decaiu rapidamente até quase desaparecer no século seguinte, sobejada pela produção das províncias vizinhas. Cabe aqui fazer juízo de 3 fatores ligados ao declínio dos cafeicultores do Vale do Paraíba: o mais importante fator é o ecológico do desgaste do solo das lavouras; que não teve reposta ao solo a sua fertilidade natural de Mata Atlântica e nem recondicionado o solo a nove regime de fertilidade agrícola. O solo “consumido” pela agricultura do cafeeiro, levou a deterioração geral e cronologicamente sincronizada de toda a lavoura de café do Vale do Paraíba. O segundo é de ordem cambial pois a moeda impressa no Brasil apenas foi lastrada pela Caixa de Conversão ao padrão-ouro em 1906 e em todo o desenvolvimento da produção do café, pela importância econômica do café ser enorme na entrada de moeda estrangeira no Brasil, sempre que o café caía de preço no exterior, a desvalorização da moeda levava ele a valer mais moeda nacional, tornando a margem de lucro da venda do café parcialmente protegida a custas da desvalorização da moeda nacional e o juros para financiamento de lavouras em média em torno de 20%53, e, indiretamente, à custas da sociedade que amortizava a inflação deste sistema financeiro; por fim, de razão social e financeira, após a Lei de Abolição da Escravidão, de 13 de maio de 1888, veio o fenômeno social na província do Rio de Janeiro da saída em massa da população recém liberta do regime de escravidão, para fora das fazendas fluminenses, o que tinha um efeito duplo: dissipava-se a força de trabalho das fazendas de café (o que liquidava em termos de patrimônio a maior parcela do capital retido do fazendeiro cafeicultor54) e, ao mesmo tempo, estes fazendeiros perdiam o seu lastro patrimonial para crédito com os bancos, que, por costume estabelecido, concediam crédito aos fazendeiros baseando a soma do crédito no número de escravos no cativeiro da fazenda. Enfim, se sobrepuseram como fatores do declínio da cafeicultura no Vale do Paraíba o declínio da fertilidade do solo; a regulação por Lei do lastro da moeda no padrão-ouro que evidenciavam os custos de produção e revelavam a problemática contabilidade financeira da cafeicultura em solos depauperados; o colapso do sistema de crédito aos fazendeiros; e o despovoamento do Vale do Paraíba foram os principais fatores que se somados explicam o rápido declínio da economia cafeeira na província do Rio de Janeiro. Neste processo econômico, social e ecológico, a atividade cafeeira decaiu no Vale do Paraíba, mas o mesmo não se repetiu no Noroeste paulista e Minas Gerais: antes do vertiginoso declínio da cafeicultura do vale do Paraíba, a Estrada de Ferro Pedro I em 1878 chegara em Casa Branca, fato que simbolizou a abertura do potencial cafeeiro do Noroeste Paulista, de toda a região chamada Mogiana55, e regiões de Minas Gerais próximas. Quando a abolição da escravidão finalmente foi feita Lei, a cafeicultura brasileira estava assentada em bases de industria e comércio consolidadas.

Este é o tema para um outro texto, mas finalizaremos este introduzindo este tema.
A República brasileira foi proclamada tendo como cena de fundo o setor cafeeiro da economia sendo defendido como questão de interesse nacional56.
Na última década do século XIX a economia brasileira indicou uma nova corrente pressionando-a para outra direção, percebida na valorização da moeda na década do século XX. Segundo Maria Teresa Versiani, a moeda brasileira, propulsionada pelo incremento de novas divisas ao PIB nacional como a borracha, e também pela evolução do setor manufatureiro que corroborou para melhorar a balança comercial brasileira, mostrou estar em uma rampa de valorização até 1895, quando a balança comercial começou a tender a instabilidades de preços de commodities em meio ao cenário desfavorável de crise econômica na Europa.
A perda de receita brasileira na balança comercial é fato de maior importância e diretamente correspondente ao grande aumento da dívida pública brasileira na passagem deste século57. A situação de crise cambial teve a sua fase mais aguda durante o governo de Prudente de Morais (1894-1898). Com o novo governo, encabeçado por Campos Salles, começa-se a política ortodoxa de valorização cambial por meio de medidas recessivas sobre os gastos do governo, atrelado a moratória sobre a dívida externa brasileira. O cenário de aquecimento dos mercados internacionais a partir de 1898 tramou com as medidas de austeridade fiscal brasileira e o resultado foi a forte recessão econômica, desestabilização do mercado de créditos do Rio de Janeiro, e a estabilização da taxa cambial com retomada da valorização da moeda nacional58.
O efeito para a cafeicultura desta valorização da moeda nacional e oferta de crédito foi a contínua expansão da cafeicultura em um cenário de queda da taxa cambial do comércio do café59. As medidas econômicas de austeridade do governo de Campos Salles foram continuadas pelo sucessor da presidência do Brasil, Rodrigues Alves, em vista de um cenário diplomático brasileiro de compromissos com os termos da moratória da dívida brasileira com os bancos ingleses. Com Rodrigues Alves a recessão econômica decorrente das medidas de austeridade, somada a queda do preço internacional do café, criava dissidências na elite e o debate parlamentar redefinia uma oposição, liderada por Prudente de Morais. As políticas de austeridade e valorização cambial iniciadas com Campos Salles culminaram na fratura do lobby dos cafeicultores e subsequente organização desta dissidência em torno do entendimento comum que a valorização da moeda nacional com o preço do café relativamente estagnado varria dos cafeicultores a riqueza60. A crise política de interesses faccionados no seio das elites agrárias brasileiras culminou no Convênio de Taubaté, em 1906. Nele, a proposta da oposição ao governo de se criar uma instituição que regulasse a balança cambial para garantir que a moeda nacional não interferisse prejudicialmente a lucratividade da venda de commodities, como o café, dobrou o governo e fez-se impor, surgindo a Caixa de Conversão. O projeto encabeçado pelo deputado da bancada mineira David Campista e pelo deputado gaúcho Pinheiro Machado, tinham como bandeira a estabilização cambial, que era um interesse ecumênico na federação brasileira, e associada a ela a valorização do café. Entretanto, esta valorização era complexa, pois ela tinha de ser dosada na medida em que não forcasse a taxa cambial para cima, o que revelava sobre a organização do lobby do café a busca de manutenção de ganhos tendo como projeção um equilíbrio complicado da economia nacional. A Caixa de convenção foi fundada com o poder de Lei sobre todo o comércio e o regimento de estabelecer uma moeda de ouro com valor de 15 pences, até um teto de 20 milhões de libras esterlinas. Desta forma, derrubava-se a Lei do Império de 1846 que estabeleceu o valor da moeda nacional a 27 pences de libra esterlina, e o resultado foi a desvalorização forçada da moeda nacional frente a balança cambial61 por um engenhoso mecanismo de emissão de moeda estabelecida a 15 pences o 1 mil reis por força da compra de ouro pela Caixa de Conversão na proporção em que credores nacionais e internacionais, financiavam ela. O efeito desta desvalorização era a emissão controlada de papel moeda combinada com a prerrogativa protecionista sobre a economia nacional. A instituição, ainda que criada em meio a debates parlamentares polarizados, representava uma causa “ecumênica”, e seus efeitos atendiam o interesse de diferentes setores: era suave para comerciantes por refletir a situação atual da balança cambial e aumentar o crédito na praça; pelos cafeicultores, que conseguiam com isto reduzir os custos de produção a partir dos lucros em moeda corrente auferidos com o comércio exterior; e também para a indústria, para quais reverbera o efeito da desvalorização da moeda tornando-se mais competitivas para suprir a demanda do mercado nacional62.
Segundo Leandro Salman Torelli, a Caixa de Conversão permitiu a economia nacional expandir enquanto o capital internacional buscava pousos seguros. Com a chegada da Grande Guerra, a contração dos capitais mostrou o flanco frágil da economia nacional estruturada no fluxo do mercado financeiro63.
O texto continuará em uma nova postagem do Blog-Embaúba. Agradecemos a você, leitor, a sua visita. Cordialmente, Pedro Lotti Carvalho Dias

  1. SALAZAR, Sheila. Café, los Granos de Oro. in: El Desafio de Historia: Dossier Café (ano 6, revista 47). Caracas, 2013. P. 39. ↩︎
  2. TAUNAY, Afonso d`E. Pequena História do Café no Brasil. Ed. UNB. P. 4. ↩︎
  3. TAUNAY, Afonso d`E. Pequena História do Café no Brasil. Ed. UNB. P. 6. ↩︎
  4. TAUNAY, Afonso d`E. Pequena História do Café no Brasil. Ed. UNB. P. 10. ↩︎
  5. TAUNAY, Afonso d`E. Pequena História do Café no Brasil. Ed. UNB. P. 14. ↩︎
  6. TAUNAY, Afonso d`E. Pequena História do Café no Brasil. Ed. UNB. P. 15. ↩︎
  7. MARQUESE, Rafael de Bivar. “Capitalismo, Escravidão e a economia cafeeira do Brasil no longo do século XIX.” in: Revista de História. João Pessoa, 2013. P. 300. ↩︎
  8. OLIVEIRA-PEITL, Carla Liegi Lonardoni. Diversidade de Microflora Associada aos Grãos de Cafés de Boa qualidade no Subtrópico. Londrina: Universidade Estadual de Londrina, TD, 2016. P. 22 ↩︎
  9. TAUNAY, Afonso d`E. Pequena História do Café no Brasil. Ed. UNB. P. 18. ↩︎
  10. TAUNAY, Afonso d`E. Pequena História do Café no Brasil. Ed. UNB. P. 22. ↩︎
  11. COSTA, Emília Viotti da. Da Senzala à Colônia. São Paulo: Ed. Unesp. 1998. P. 64. ↩︎
  12. MARQUESE, Rafael de Bivar. “Capitalismo, Escravidão e a economia cafeeira do Brasil no longo do século XIX.” in: Revista de História. João Pessoa, 2013. P. 294. ↩︎
  13. MARQUESE, Rafael de Bivar. “Capitalismo, Escravidão e a economia cafeeira do Brasil no longo do século XIX.” in: Revista de História. João Pessoa, 2013. P. 297. ↩︎
  14. GANDRA, Daniel Nogueira. Audazes Pioneiros: Terras, Escravos, e Fortunas em Piraí, 1810-1888. Rio de Janeiro: Unirio, TD, 2020. P. 44. ↩︎
  15. TAUNAY, Afonso d`E. Pequena História do Café no Brasil. Ed. UNB. P. 41. ↩︎
  16. TAUNAY, Afonso d`E. Pequena História do Café no Brasil. Ed. UNB. P. 30. ↩︎
  17. MARQUESE, Rafael de Bivar. “Capitalismo, Escravidão e a economia cafeeira do Brasil no longo do século XIX.” in: Revista de História. João Pessoa, 2013. P. 298. ↩︎
  18. GANDRA, Daniel Nogueira. Audazes Pioneiros: Terras, Escravos, e Fortunas em Piraí, 1810-1888. Rio de Janeiro: Unirio, TD, 2020. P. 34; p. 59. ↩︎
  19. TAUNAY, Afonso d`E. Pequena História do Café no Brasil. Ed. UNB. P. 93. ↩︎
  20. COSTA, Emília Viotti da. Da Senzala à Colônia. São Paulo: Ed. Unesp. 1998. P. 99. ↩︎
  21. GANDRA, Daniel Nogueira. Audazes Pioneiros: Terras, Escravos, e Fortunas em Piraí, 1810-1888. Rio de Janeiro: Unirio, TD, 2020. P. 50. ↩︎
  22. COSTA, Emília Viotti da. Da Senzala à Colônia. São Paulo: Ed. Unesp. 1998. P. 72. ↩︎
  23. COSTA, Emília Viotti da. Da Senzala à Colônia. São Paulo: Ed. Unesp. 1998. P. 75. ↩︎
  24. COSTA, Emília Viotti da. Da Senzala à Colônia. São Paulo: Ed. Unesp. 1998. P. 77. ↩︎
  25. COSTA, Emília Viotti da. Da Senzala à Colônia. São Paulo: Ed. Unesp. 1998. P. 75 ↩︎
  26. MARQUESE, Rafael de Bivar. “Capitalismo, Escravidão e a economia cafeeira do Brasil no longo do século XIX.” in: Revista de História. João Pessoa, 2013. P. 294. ↩︎
  27. MARQUESE, Rafael de Bivar. “Capitalismo, Escravidão e a economia cafeeira do Brasil no longo do século XIX.” in: Revista de História. João Pessoa, 2013. P. 302. ↩︎
  28. GANDRA, Daniel Nogueira. Audazes Pioneiros: Terras, Escravos, e Fortunas em Piraí, 1810-1888. Rio de Janeiro: Unirio, TD, 2020. P. 43. ↩︎
  29. COSTA, Emília Viotti da. Da Senzala à Colônia. São Paulo: Ed. Unesp. 1998. P. 222. ↩︎
  30. COSTA, Emília Viotti da. Da Senzala à Colônia. São Paulo: Ed. Unesp. 1998. P. 206. ↩︎
  31. COSTA, Emília Viotti da. Da Senzala à Colônia. São Paulo: Ed. Unesp. 1998. P. 203. ↩︎
  32. MARQUESE, Rafael de Bivar. “Capitalismo, Escravidão e a economia cafeeira do Brasil no longo do século XIX.” in: Revista de História. João Pessoa, 2013. P. 304. ↩︎
  33. COSTA, Emília Viotti da. Da Senzala à Colônia. São Paulo: Ed. Unesp. 1998. P. 220. ↩︎
  34. COSTA, Emília Viotti da. Da Senzala à Colônia. São Paulo: Ed. Unesp. 1998. P. 222. ↩︎
  35. MARQUESE, Rafael de Bivar. “Capitalismo, Escravidão e a economia cafeeira do Brasil no longo do século XIX.” in: Revista de História. João Pessoa, 2013. P. 305. ↩︎
  36. COSTA, Emília Viotti da. Da Senzala à Colônia. São Paulo: Ed. Unesp. 1998. P. 119. ↩︎
  37. COSTA, Emília Viotti da. Da Senzala à Colônia. São Paulo: Ed. Unesp. 1998. P. 111. ↩︎
  38. COSTA, Emília Viotti da. Da Senzala à Colônia. São Paulo: Ed. Unesp. 1998. P. 134. ↩︎
  39. COSTA, Emília Viotti da. Da Senzala à Colônia. São Paulo: Ed. Unesp. 1998. P. 123. ↩︎
  40. COSTA, Emília Viotti da. Da Senzala à Colônia. São Paulo: Ed. Unesp. 1998. P. 125. ↩︎
  41. COSTA, Emília Viotti da. Da Senzala à Colônia. São Paulo: Ed. Unesp. 1998. P. 237. ↩︎
  42. COSTA, Emília Viotti da. Da Senzala à Colônia. São Paulo: Ed. Unesp. 1998. P. 177. ↩︎
  43. GONÇALVES. Paulo Cesar. “Procuram-se braços para a lavoura: imigrantes e retirantes na economia cafeeira paulista no final do Oitocentos”, in: Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 34, no 67, 2014. p. 283-308. ↩︎
  44. GONÇALVES. Paulo Cesar. “Procuram-se braços para a lavoura: imigrantes e retirantes na economia cafeeira paulista no final do Oitocentos”, in: Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 34, no 67, 2014. p. 302 ↩︎
  45. COSTA, Emília Viotti da. Da Senzala à Colônia. São Paulo: Ed. Unesp. 1998. P. 189. ↩︎
  46. COSTA, Emília Viotti da. Da Senzala à Colônia. São Paulo: Ed. Unesp. 1998. P. 239. ↩︎
  47. COSTA, Emília Viotti da. Da Senzala à Colônia. São Paulo: Ed. Unesp. 1998. P. 217. ↩︎
  48. COSTA, Emília Viotti da. Da Senzala à Colônia. São Paulo: Ed. Unesp. 1998. P. 231. ↩︎
  49. COSTA, Emília Viotti da. Da Senzala à Colônia. São Paulo: Ed. Unesp. 1998. P. 222. ↩︎
  50. GONÇALVES, Paulo Cezar. “Procuram-se braços para a lavoura: imigrantes e retirantes na economia cafeeira paulista no final do Oitocentos”. Revista Brasileira de História, vol. 34, no 67. P. 291. ↩︎
  51. COSTA, Emília Viotti da. Da Senzala à Colônia. São Paulo: Ed. Unesp. 1998. P. 194. ↩︎
  52. COSTA, Emília Viotti da. Da Senzala à Colônia. São Paulo: Ed. Unesp. 1998. P. 237. ↩︎
  53. GANDRA, Daniel Nogueira. Audazes Pioneiros: Terras, Escravos, e Fortunas em Piraí, 1810-1888. Rio de Janeiro: Unirio, TD, 2020. P. 40; p. 57. ↩︎
  54. GANDRA, Daniel Nogueira. Audazes Pioneiros: Terras, Escravos, e Fortunas em Piraí, 1810-1888. Rio de Janeiro: Unirio, TD, 2020. p. 62. ↩︎
  55. GANDRA, Daniel Nogueira. Audazes Pioneiros: Terras, Escravos, e Fortunas em Piraí, 1810-1888. Rio de Janeiro: Unirio, TD, 2020. P. 38. ↩︎
  56. TORELLI, Leandro Salman. Os interesses da elite paulista na criação da Caixa de Conversão: os debates parlamentares (1898-1914). Leituras de Economia Política, Campinas, (12): 1-23, jan. 2006/dez. 2007. P. 1. ↩︎
  57. TORELLI, Leandro Salman. Os interesses da elite paulista na criação da Caixa de Conversão: os debates parlamentares (1898-1914). Leituras de Economia Política, Campinas, (12): 1-23, jan. 2006/dez. 2007. P. 3. ↩︎
  58. TORELLI, Leandro Salman. Os interesses da elite paulista na criação da Caixa de Conversão: os debates parlamentares (1898-1914). Leituras de Economia Política, Campinas, (12): 1-23, jan. 2006/dez. 2007. P. 5. ↩︎
  59. TORELLI, Leandro Salman. Os interesses da elite paulista na criação da Caixa de Conversão: os debates parlamentares (1898-1914). Leituras de Economia Política, Campinas, (12): 1-23, jan. 2006/dez. 2007. P. 3 ↩︎
  60. TORELLI, Leandro Salman. Os interesses da elite paulista na criação da Caixa de Conversão: os debates parlamentares (1898-1914). Leituras de Economia Política, Campinas, (12): 1-23, jan. 2006/dez. 2007. P. 6 ↩︎
  61. TORELLI, Leandro Salman. Os interesses da elite paulista na criação da Caixa de Conversão: os debates parlamentares (1898-1914). Leituras de Economia Política, Campinas, (12): 1-23, jan. 2006/dez. 2007. P. 9 ↩︎
  62. TORELLI, Leandro Salman. Os interesses da elite paulista na criação da Caixa de Conversão: os debates parlamentares (1898-1914). Leituras de Economia Política, Campinas, (12): 1-23, jan. 2006/dez. 2007. P. 13 ↩︎
  63. TORELLI, Leandro Salman. Os interesses da elite paulista na criação da Caixa de Conversão: os debates parlamentares (1898-1914). Leituras de Economia Política, Campinas, (12): 1-23, jan. 2006/dez. 2007. P. 22 ↩︎

Deixe um comentário

Carrinho de compras
Rolar para cima